Tuesday, March 14, 2006

DIRETO DA ESCOTILHA

A TRILHA DO SUCESSO

Carlos Alexandre*

Cena 1: É um dia muito aguardado na ilha. Depois de muito trabalho, os sobreviventes da parte da frente do vôo 815 finalmente põem n'água a jangada construída por Michael e Jin. Estes dois, somados a Sawyer e Walt, se cumprimentam ao içarem a vela, quase que repetindo os gestos de comemoração de Sayid, Charlie e dos demais que vibravam ao ver da terra firme aquela rude embarcação avançando mar adentro. Navega a esperança.

Cena 2: A agulha da vitrola pula. Logo, um homem se agita com a possível presença de intrusos em seu habitat. A seqüência é rápida e eletrizante como o alerta recebido em forma de estrondo: o homem veste um macacão, procura armas, corre, liga comandos num painel, olha em um telescópio. Começa o fim da confusão. Tudo indica que o tal homem está enfim focando em algo mostrado através de um jogo de espelhos. O telespectador viaja pelos reflexos até descobrir, de forma lenta e agoniante, a imagem final vislumbrada pelo indivíduo: Locke e Jack com tochas nas mãos e perplexos diante da profundidade do túnel escuro que se revelou por trás da escotilha que tinham acabado de explodir.

Se você é um fã de "Lost", lembra-se com exatidão das cenas descritas acima. E eu posso afirmar que, com um mínimo de esforço, também pode se recordar das trilhas sonoras que as enriqueceram - aposto que muito provavelmente elas vieram de forma natural, junto com a memória visual.

O homem que embala a trama hipnotizante de Lost atende pelo nome de Michael Giacchino. Pode-se dizer que Giacchino é o equivalente sonoro às cenas roteirizadas e dirigidas por JJ Abrams - parceria que se iniciou com a segunda série deste, a (excelente) "Alias". Em breve, como foi adiantado aqui por este blog, teremos a trilha sonora original de "Lost" em CD.

A exemplo de Ennio Morricone e Henry Mancini, Michael Giacchino parece confirmar a tradição italiana em nos dar belos compositores de trilhas - ok, o único do trio que nasceu na bota européia foi Morricone pois Mancini é de Ohio e Giacchino é de New Jersey, mas vale a forçada por conta da origem em comum a todos. O que importa é que, inegavelmente, a trilha de Giacchino é um dos grandes trunfos de "Lost".

Qualquer aplauso dado ao compositor/arranjador não é exagero. O trabalho que ele vem desenvolvendo em "Lost" possui características singulares. E olha que a série praticamente abre mão de um recurso que, se não é definitivo para apontar o sucesso ou fracasso de uma atração do gênero, geralmente é algo que faz criar alguma empatia junto ao telespectador: o tema de abertura. A sinistra minivinheta sonora que se ouve enquanto o título da atração flutua num fundo escuro é na verdade de autoria do próprio JJ Abrams. Ou seja: Giacchino não tem a moleza de poder nos cativar já no "carro abre-alas".

Por isso, cabe a ele nos vencer nos quarenta e poucos minutos de ação, drama, comédia, aventura e suspense dessa montanha-russa que é "Lost"; e a cada episódio vemos e comprovamos que ele consegue. Seja fazendo uso de um piano triste e solitário ou nos entorpecendo num frenesi de orquestra de cordas, Giacchino brilha. Não fosse assim, como você conseguiria se recordar dos temas que temperam as cenas descritas no começo deste texto e de tantas outras mais, como o do drama em fortes sons de Locke se mostrando paraplégico num flashback e logo após, de volta à ilha, se levantando na areia para descobrir seu milagre particular ? E da 'latinindad' numa salsa meio torta que embriaga a impagável odisséia-de-uma-manhã do igualmente impagável Hurley para conseguir embarcar no vôo 815 ? Ou ainda, da suave melodia que acompanhou Shannon em sua doce cantoria francesa?

Garanto que não só muitos guardam em corações e mentes as peças melódicas da série como anseiam pelo CD da trilha quase da mesma forma com que cobiçam DVDs das temporadas e novos episódios. Tudo porque "Lost" nos acostumou a reconhecer, respeitar e creditar o seu sucesso não apenas à criatividade de Lindelof, Cuse e Abrams mas também à de um certo Michael Giacchino. Na mesma nota, no mesmo tom.

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*Carlos Alexandre Monteiro é músico e não poderia começar esta coluna falando de outro assunto.


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